segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Sábios Xavantes

Em tempo de reflexões para um Ano Novo, pensemos: O que é Normal????
Vale muito a pena reservar um tempo para ler:


Das histórias que pude partilhar na vida e que, vez ou outra, relato nos diálogos, há uma exemplar que, inclusive pude já em 1997 incluir em livro meu antes mencionado (A escola e o conhecimento), embora mais resumidamente.
Em 1974, dois caciques da nação Xavante vieram visitar a cidade de São Paulo. Na época, os xavantes não usavam o dinheiro como meio de qualidade de vida. Para eles, qualidade de vida era alimento, porque era o jeito de garantir sobrevivência. O avião deles, que vinha de Cuiabá, pousou em Congonhas e eles foram levados ao abrigo da Funai, que ficava na Vila Mariana. No dia seguinte, foram convidados a passear. Ficaram boquiabertos com a Avenida Paulista, 2,5 km de catedrais financeiras. Foram levados a andar de metrô, que acabava de ser inaugurado. Ficaram pasmos com a velocidade daquele transporte. Foram levados ao shopping. Havia apenas dois naquela época, hoje são cerca de sessenta. Sabe o que eles não conseguiram entender no shopping e a gente não conseguiu explicar? Por que a gente entrava num lugar cheio de espelho. Eles achavam inacreditável que, num mundo cheio de gente, a gente gostasse de se ver, em vez de ver o outro. Se você estava com você o tempo todo, por que ia querer se ver? Esse excesso de espelho é um símbolo ético também, de certa forma de egonarcisismo, que veio sobre nós.


Nós os levamos também a um lugar magnífico, o Mercado Municipal, na área central. Aquilo é uma espécie de entreposto comercial, imenso, projetado por Ramos de Azevedo, grande arquiteto que fez o Teatro Municipal e a Faculdade de Saúde Pública. E no Mercado Municipal é comida para todo lado. Eles deram dois passos e ficaram pasmos. Pilhas de alface, de tomates, de cenoura, de laranja. Ficaram com o olhar talvez como o nosso olhar ficaria se entrássemos no cofre de um banco. Em certo momento, um deles viu uma coisa que nenhum e nenhuma de nós veria. Ele cutucou e perguntou: "O que ele está fazendo?" E apontou no chão um menino negro, pobre (a gente sabia que era pobre por causa da roupa, ele não saberia) pegando alface pisada, tomate estragado, batata já moída e colocando num saquinho. Nenhum e nenhuma de nós veria aquilo, pois para nós era normal. Normal? Cuidado com o conceito de normal.
Nós falamos: "Ué, ele está pegando comida". O cacique não disse mais nada. Ele continuou andando conosco, mas não prestou atenção em mais nada. Depois de uns 15 minutos, ele falou:

- Eu não entendi. Por que ele está pegando essa comida estragada aqui no chão, se tem essa pilha de comida boa?

- É que para pegar comida dessa pilha aqui precisa de dinheiro.

- E ele não tem dinheiro?

- Não tem.

- Por que não tem dinheiro? - indagava o cacique.

No que ele está cutucando? Na nossa base ética, no nosso valor de vida. A gente acha que criança com fome, mesmo diante de uma pilha de comida boa, pode comer comida estragada. Porque a vida é assim. É normal.

- Ele não tem dinheiro porque ele é criança.

- E o pai dele tem?

- Não, o pai dele não tem.

- Não entendi. Por que você, que é grande, tam e o pai dele, que é grande, não tem? De qual pilha você come, dessa daqui ou a do chão?

- Dessa daqui.

- Por quê?

A única resposta possível para o cacique naquele momento foi a resposta que algumas pessoas que já desistiram dão: "Sabe o que é? É que aqui é assim"...

Os dois índios, diante da resposta, falaram uma coisa de que eu nunca mais esqueci. "Vamos embora." Não é que eles pediram para ir embora do mercado, eles pediram para ir embora de São Paulo. Veja como eles são "selvagens".
Eles não conseguiram compreender essa coisa tão óbvia: que uma criança faminta, diante de uma pilha de comida boa, pega comida podre. Eles não são "civilizados". Sabe como ele passaria batido e nem repararia na cena? Se ele tivesse ido a algumas de nossas escolas, se ele tivesse assistido alguns de nossos meios de comunicação. Aí ele ia achar aquela cena normal.
Neste instante, é bom lembrar que é necessário cuidar da ética porque senão anestesiamos a nossa consciência e começamos a achar tudo normal.


Vou contar uma coisa que você que é jovem pode não acreditar. Quando eu me mudei para São Paulo, há 37 anos, a gente saía da escola, do trabalho, do bar, andava às 11h da noite sozinho para casa, ouvia passos de outra pessoa e sentia alegria. "Graças a Deus, vem vindo outra pessoa." Sabe do que a gente tinha medo? De defunto. A gente passava longe do muro do cemitério, da parte de trás da igreja. Hoje, você sai às 11h da noite de casa, da escola, do trabalho, da igreja, ouve passos de outra pessoa e teme: "Meu Deus do céu, vem vindo outra pessoa".

O que aconteceu? Será que nos distraímos em algum momento e a nossa ética não é a da convivência, mas é a do outro como inimigo? "Ah, mas aqui é assim." Violência? "Aqui é assim. Eu já fui assaltado e agora tenho duas bolsas, uma do ladrão e uma minha. A minha fica debaixo do banco. Eu uso carro blindado."

Claro. Nós vamos criando meios de nos acostumarmos ao normal.

“Normal?"

Texto de Mario Sergio Cortella, em seu livro "Qual é a Tua Obra?"

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